Disciplina e Formalidade

De: Hildo Honório do Couto
Universidade de Brasília

É muito comum ouvirmos alguém dizer que, para se praticar tai chi chuan é preciso ter muita disciplina. Até aí não haveria nenhum problema. O problema surge quando confundimos disciplina com formalidade, formalismo vazio, aquele que coloca os rituais acima da boa convivência entre as pessoas. Realmente, para praticar tai chi chuan, bem como qualquer outra atividade, é preciso ter força de vontade. É preciso ser muito disciplinado. No entanto, a disciplina requerida para essa prática nada tem a ver com formalismo ou formalidade. Pelo contrário, nesse caso, a formalidade pode até atrapalhar. Quem é avesso a um mínimo de disciplina não é a pessoa mais indicada para praticar tai chi. Mas, uma pessoa contrária a formalismos pode ser um mestre nessa arte.

Meu objetivo aqui é tentar mostrar que há uma diferença gigantesca entre formalidade e disciplina, partindo das conceituações dos termos dadas pelo dicionário e como eles são entendidos na prática diária dos falantes de português. Pretendo mostrar que para dominar a técnica do tai chi chuan, e de qualquer outra arte, por sinal, é necessário ter muita perseverança, tenacidade, obstinação, força de vontade, vale dizer, disciplina. O formalismo, ou a formalidade, pode ficar de lado. Na verdade, ele (ou ela) atrapalha, uma vez que vem do exterior. Na prática do tai chi, pelo contrário, sempre ouvimos os mestres dizerem que o principal vem do interior. E o que vem do interior exige disciplina, pois só quem a tem consegue despender o esforço requerido.

O mestre Woo é altamente disciplinado. Isso pode ser visto no fato de desde mais ou menos 1974 ele ir religiosamente ao que é hoje a Praça da Harmonia Universal praticar e ensinar tai chi chuan. Todos os dias, chova ou faça sol, lá está ele, e em geral é o primeiro a chegar. Quando termina o primeiro horário às sete horas, ele sempre espera até os primeiros praticantes do horário seguinte (das 7h30min à 8h30min) chegarem. A despeito disso, ele é uma das pessoas mais refratárias ao formalismo que conheço. Justamente por ser aberto, não impõe esse ou aquele estilo de tai chi, bem como não exige que todos os monitores o pratiquem exatamente como ele pratica, que sigam seu estilo. Como bom antiformalista que é, aceita todos os exercícios físicos diferentes que cada monitor introduz. Talvez por isso mesmo a prática tenha tido continuidade por tantos anos. Se ele fosse do tipo inflexível, que valoriza a formalidade e coloca as pessoas para servirem as regras, teria desagradado muita gente e, provavelmente, não teríamos um grupo de pessoas relativamente harmonioso reunido em torno dele na PHU. Enfim, sejamos disciplinados, mas deixemos de lado o formalismo porque, na melhor das hipóteses, é uma atitude muito antipática.

Como lembrou P. A. Kropotkin, “o autor da coleção de leis francesas conhecida sob o nome de Repertório da Legislação”, Dalloz, disse que “quando a ignorância está no seio das sociedades e a desordem nos espíritos, as leis tornam-se numerosas. Os homens esperam tudo da legislação e, sendo cada lei nova um novo desapontamento, continuam a pedir-lhes sem cessar o que não pode vir senão deles próprios, da sua educação, do estado dos seus costumes” (Kropotkin, Textos escolhidos, Porto Alegre: L& PM Editores, p. 68, 1987). Mas, como Kropotkin era um filósofo do anarquismo, poderíamos ser levados a pensar que ele subscreve esse pensamento justamente por ser anarquista. No entanto, Dalloz era uma pessoa do governo, portanto, estava do lado oposto ao dos anarquistas.

Toda a filosofia do taoísmo é contra formalismos e favorável à disciplina. Comecemos por Lao Tzu, lendário autor do Tao te ching e um dos três clássicos taoístas (os outros dois são Chuang Tzu e Lieh Tzu), sem contar o I ching. Como podemos ver ao lermos um de seus 81 poemas todo dia após nossa prática diária de tai chi, ele não gosta nem de muita regra nem de muita lei. Já no poema 18, ele afirma que “a moralidade e o direito nasceram / quando o homem deixou de viver”, ou seja, para vivermos plenamente e felizes não são necessárias tantas leis nem moralismos. O bom senso, a sensibilidade e a solidariedade já nos mostram como deveríamos nos comportar em cada situação. No poema 34 a idéia é retomada. Falando da incapacidade de agir pela visão do Tao, pela virtuosidade e pela caridade, ele diz que “quem nem disso é capaz / obedece a ritos e tradições / mas a dependência de ritualismos / é o ínfimo grau de moralidade”. No entanto, Lao Tzu não apregoa o deus-dará, o caos, pois “o homem correto /age por uma lei interna, / e não por mandamentos externos”, como se vê ainda no poema 34.

Ao longo de todo o Tao te ching vemos essa tese defendida de uma forma ou de outra. Por exemplo, no poema 31, vemos que “em tempos bons, apreciamos a justiça / em tempos maus, recorremos ao “direito”. Para ele, e para os taoístas em geral, deveríamos fazer exatamente o contrário, agir de acordo com os princípios espontâneos de solidariedade, humildade, tolerância, enfim, viver em harmonia com a natureza e com os demais membros da sociedade. Isso porque “a obediência a essas leis imanentes / que atuam de dentro de si mesmas / garante a ordem do cosmos” (poema 65). O que é mais, tanto Lao Tzu não é contra a disciplina que, no poema 64 afirma explicitamente que “a ordem deve ser mantida / antes que surja a desordem”. Só que a ordem a que ele se refere não é propriamente a ordem da legislação, mas a que deriva da harmonia natural e social.

A fúria legiferante, ou seja, o gosto por criar leis, é contestada diretamente no poema 58, no qual ele diz que “um governo que não aparece / faz o povo feliz / um governo que quer tudo determinar / faz o povo infeliz”. A ordem deve surgir espontaneamente, da convivência harmoniosa entre as pessoas. Tanto que, “quando a humanidade vive em ordem / os cavalos puxam o arado”. O que é mais, “quando ela renega sua lei interna / os cavalos se preparam para a guerra”, como está dito no poema 46. Dito de outro modo, as regras de convivência que surgem espontaneamente da convivência harmoniosa chegam a evitar guerras, e os esforços são direcionados para o trabalho.

Do contrário, “abundam ladrões e salteadores / quando o governo só confia / em leis e decretos / para manter a ordem” (poema 57), o que se deve ao fato de as leis e os decretos que surgem nessas situações serem impositivos, visarem mais ao interesse dos detentores do poder do que aos do povo. Os tiranetes de plantão estão sempre criando novos decretos, a fim de garantir seus privilégios e sua impunidade. Nesse caso, quem não respeita seus privilégios e sua impunidade está desobedecendo à lei. O sábio geralmente age assim. No entanto, obedece às leis do bom senso, da tolerância, da humildade, da moderação. A tal ponto que “ele é bom com os bons / e bom com os não-bons”. Além disso, “ele é honesto com os honestos / e honesto com os desonestos”, como se pode ler no poema 49.

Como a disciplina decorre do interior, não do exterior como as leis (e os decretos-leis), ela é reconhecida não só pelo taoísmo (ou a filosofia chinesa em geral). Pelo contrário, ela é universalmente observada. Há um dito no direito romano, segundo o qual Summum ius, summa iuria, que pode ser traduzido mais ou menos como “o máximo de direito é o máximo de injustiça”. No mesmo contexto já se disse que “o direito é o contrário da justiça”. Tanto que desde tempos imemoriais se tem feito distinção entre direito natural e direito positivo, formal. O primeiro decorre do bom senso, da convivência harmoniosa, da tolerância, enfim, de nossa convivência uns com os outros, com os demais seres vivos e a com a natureza em geral. É o caso do direito à vida. Outro exemplo de comportamento disciplinado que nasce naturalmente da observância do direito natural é a formação de fila. Ela garante o direito de quem chega primeiro, evitando que os mais fortes e os espertalhões (que existem em abundância por aí) passem na frente de quem chegou primeiro.

Poderíamos dizer que o direito natural defende a justiça, ao passo que o direito positivo defende em primeiro lugar a letra da lei. Mesmo que essa obediência prejudique gratuitamente uma pessoa ou um grupo de pessoas, ou até todo mundo, menos os que fizeram a lei, é claro. O defensor fundamentalista do direito positivo, que, por isso mesmo procura ridicularizar e desrespeitar o direito natural, põe em primeiro plano os caputs, os artigos, os parágrafos e alíneas das leis. Está na lei, dizem eles. Se isso causar um dano irreparável em alguém, não lhe interessa. Obedeça-se a lei. Só que em regimes autoritários e subdesenvolvidos, há o princípio de “para os amigos tudo, para os inimigos a cadeia e para os indiferentes a lei”.

Leis assim são sempre injustas. A tal ponto que o filósofo do direito Roberto Lyra Filho afirmou que o arcabouço jurídico dos países capitalistas é um conjunto de normas para garantir os privilégios das classes dominantes. Tanto assim que não vemos nenhum ladrão de casaca na cadeia. Quando vão para lá, ficam no máximo alguns dias, pois sempre há um juiz que aplica diligentemente a “lei” para tirá-lo de lá. É por isso, e muito mais, que Lao Tzu afirmou que os bons governantes quase não aparecem, pois o excesso de leis mostra que as coisas não vão bem.

Um bom exemplo de que nem sempre o que é legal é justo é a escravidão. Até o século XIX, ela era legal. Quem a desobedecesse estava agindo “contra a lei”. Só que se tratava de uma lei iníqua, perversa. Quem tinha sentimentos humanos, compaixão, enfim, quem tinha sensibilidade para perceber o direito natural das pessoas desobedecia essa lei. De um ponto de vista humanístico, para não dizer taoísta, era uma lei monstruosa. No entanto, para as elites, os escravocratas, ela era “justa”, pois eles precisavam dos escravos para fazer os trabalhos que eles (os escravocratas) não queriam fazer. Ser a favor dos escravos era outro ato “contra a lei”.

Ná própria filosofia chinesa há exemplos claros de diferenciação entre “legal” e “justo”. Mozi (Mo Tzu), originador da corrente filosófica chamada de mohismo, e do neomohismo, fala de como valorizar “o hábito como apropriado e o costume como moralmente certo” pode levar a atrocidades. De acordo com ele, antigamente havia, na região de Gai Shu, o hábito de desmembrar o filho primogênito e comê-lo, chamando a ação de uma obrigação para com seus irmãos. O que é mais, quando o avô morria, levavam a avó para longe e a abandonavam, dizendo que não podiam viver com a esposa de um fantasma. Esses dois costumes eram “legais” na época em questão. No entanto, eram vistos como horríveis já na época de Mozi. De acordo com os formalistas, o hábito deveria ser mantido, pois desrespeitá-lo seria ir contra os costumes da comunidade, vale dizer, ir “contra a lei”. Os legalistas da época confundiam o que era meramente costumeiro com o que era justo.

Uma das razões para os sábios preferirem a disciplina à formalidade é que o formalismo jurídico pode ser unilateral. Eles sabem que em toda pendenga há três lados, que são o meu, o seu e o certo, como se diz popularmente. Segundo o taoísmo, não há nada que apresente só uma face, só um lado. Assim, o alto não existe sem o baixo, o grande sem o pequeno, o claro sem o escuro, o bom sem o ruim. Não existe algo inteiramente certo nem inteiramente errado. Os termos não são antagônicos propriamente dito, mas complementares, uma vez que se articulam ao longo do mesmo eixo. Para o formalista, no entanto, o mundo tem que estar divido entre o bem e mal, como é o caso do belicoso George W. Bush. Para quem, pensa assim, tudo ou é certo ou é errado, alto ou baixo, grande ou pequeno, claro ou escuro. Esse assunto é tratado em diversas passagens do Tao te ching.

A figura do tai chi, (também conhecida como figura do yin-yang) resume tudo isso. Como diz Otsu (2006: 169), “a característica do dia é a claridade e a característica da noite é a escuridão, mas durante o dia temos sombras que são pedaços de escuridão dentro do todo iluminado e durante a noite temos a Lua e as estrelas que são pontos de luz dentro das trevas”. Ainda segundo ele, “o símbolo [do tai chi] não é constituído apenas de áreas chapadas em preto-e-branco. Dentro da área larga de cada cor, vemos um ponto da cor oposta.” O que é mais, o preto se dissolve lentamente no branco e vice-versa, assim como a noite cede lugar ao dia paulatinamente, sem interrupção, e vice-versa. Na verdade, há um contínuo de mudanças de um para o outro, com diversas transições. Entre noite e dia existe a madrugada, o amanhecer, a alvorada. Entre o dia e noite existe o entardecer, o crepúsculo e assim por diante. Não há um ponto de mutação no qual possamos afirmar que terminou a noite e começou o dia. O que há é o todo de 24 horas, dia e noite.

Para o formalista dia é dia e noite é noite. Em sua visão não há lugar para as transições. Mas, na vida prática, quem fetichiza um deles, não reconhece o seu contrário, ou o seu complemento, não vê transições. Como salienta Roberto Otsu, quem pretende ver só o que considera o bem, acaba se tornando radical, parcial e intransigente, palavra que tem o mesmo radical que “transição”. Essa pessoa não transita de um para o outro, é unilateral, radical, fundamentalista. Com isso, acaba provocando descontentamento em outras pessoas. Muitas vezes, o formalista fundamentalista chega a adotar a violência para garantir o domínio de seu ponto de vista.

Os rituais religiosos podem ser praticados com disciplina e fervor ou apenas para preencher uma formalidade. No entanto, o próprio Cristo se manifestou em diversas oportunidades contra a hipocrisia dos fariseus, que punham o formalismo à frente de tudo, enquanto que ele punha a vida em primeiro lugar, como é o caso de colher algo para comer no sábado, lavar as mãos antes de comer etc. Os fariseus de todos os tempos valorizam a lei pela lei. Valorizam o formalismo, não a vida. Valorizam a aparência, não a essência. Do ponto de vista jurídico, ficam na letra da lei, não no espírito da lei. Apesar disso, Jesus era sabidamente muito disciplinado.

Voltando ao taoísmo e à filosofia chinesa em geral, vemos que a corrente chamada legalismo (praticada por Hanfeizi, Shen Dao e outros) é formal. Até certo ponto, também o confucionismo é formalista, embora defenda que a lei deve ser justa. Os taoístas (Lao Tzu, Chuang Tzu, Lieh Tzu e outros), ao contrário, são avessos a leis e a autoridades, tanto que hoje seriam tachados de anarquistas. No entanto, ninguém era mais disciplinado do que eles. Enfim, na prática do tai chi chuan podemos até ser informais, contra formalidades, formalismos, como são Lao Tzu e o mestre Woo. No entanto, se formos indisciplinados, não obedecendo horários, não querendo seguir quem está dirigindo as práticas, agindo assim jamais chegaremos a ser qualquer coisa na área. É claro que nos é impossível seguir à risca tudo que o Tao te ching nos aconselha. Porém, se assumirmos uma posição de nos treinar sempre para a tolerância, aproximar-nos-emos bastante desse objetivo. Com certeza seremos melhores praticantes de tai chi e viveremos melhor. Estaremos no espírito das três palavras que dizemos ao final de nossa prática diária, quais sejam, FRATERNIDADE, SAÚDE E PAZ.

Bibliografia
– Lyra Filho, Roberto. 1983. O que é direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 3a. edição.
– Lao Tzu. 2004. Tao te ching. São Paulo: Editora Martin Claret.
– Mozi. 2008. Mohism. In: http://plato.stanford.edu/entries/mohism (acesso: 10/11/2008)
– Otsu, Roberto. 2006. A sabedoria da natureza. São Paulo: Editora Ágora.